27 de fev. de 2011

Desiderata

Quando dei por mim, estava morta. Atirada displicentemente no sofá da sala, boca escancarada como num convite ao demônio, olhos cerrados como se não ousasse ver a face do meu assassino. Morta, assim, atirada displicentemente no sofá da sala, como se já não estivesse morta muito antes, talvez sempre, desde que conhecida como viva, enfiada em vestidos vermelhos e sorrisos amarelos como se para desfarçar a minha falta de cor. Sempre morta, sempre ciente que morta, sempre descrente que depois de morta e atirada displicentemente no sofá da sala, a vida enfim vivida e terminada faria algum sentido, mas até agora não fez e não fará, diria uma mulher razoável, mas eu nunca fui uma mulher razoável. Nem agora depois de morta e atirada displicentemente no sofá da sala com uma faca cravada na garganta partindo a minha fé em duas. C'est la vie, um samba antigo toca na rádio do vizinho que eu nunca fui com a cara e daqui a pouco tempo, talvez minutos, a empregada topará comigo e maldirá a limpeza do assoalho empapado de sangue e eu não quero mais assistir o quadro da minha morte, não mais ver meu corpo atirado displicentemente no sofá da sala, já que agora eu sei - mas é como se eu sempre soubesse - que o único sentido da minha morte é a consciência de nunca antes ter estado viva.