31 de ago. de 2010

Abatida


Lobo, não me peça pra mostrar a minha marca de mulher lamentável. Minha ferida aberta destoando do meu corpo fechado. Sou um pedaço do fígado de Prometeu, dilacerado, esperando o dia nascer pra com ele nascer e nascer e nascer e morrer de novo. Fui abatida. Feito lebre, em tempos de caça. Pele macia, você me diz e me beija, feito lebre em tempos de caça, e se deita comigo e me chama de linda, feito lebre em tempos de caça, e eu morro, caçada. Já é ruim o bastante sem você, não me peça isso, vá embora, e você me beija e me puxa pra mais perto, perto o bastante pra eu sentir a sua respiração na minha nuca, meu corpo febril apertado contra o seu, lebre, meu coração batendo no seu peito, vá embora. Já é ruim o bastante com você. Sou um pedaço de carne que fuma e bebe até altas horas da madrugada e se droga e pensa em você e eu não podia estar pensando - que horas seriam?, era pra você ter ido embora. A lebre corre nos tempos de caça, me arrepio pensando em você, a lebre foge nos tempos de caça, tenho tanto medo, a lebre morre nos tempos de caça, será que você volta?, nunca mais. Fui abatida. Abatida, devorada e deglutida como lebre em tempos de caça.

29 de ago. de 2010

Seu Nome

Lembro Seu Nome e a velocidade em que as coisas passam pela minha cabeça - Seu Rosto, Seu Corpo, Seu Cheiro, Seu Jeito, Você - me deixa tonta. Tonta, tento pensar, mas Seu Nome não desgruda do meu ouvido, e se eu tivesse como me transformar em algo naquele segundo seria em Seu Nome, pra não mais ouví-lo e sim sê-lo, fazendo parte pra sempre das coisas que passam pela minha cabeça - Seu Rosto, Seu Corpo, Seu Cheiro, Seu Jeito, Você. Seu Nome me machuca. Seu Nome me irrita. Seu Nome me deixa triste e me faz querer me dar um tiro ou tomar remédio pra dormir até calar Seu Nome que ecoa por todos os buracos da minha cabeça e me ensurdece, Seu Nome e as coisas que caminham pelo meu quarto como se fossem vivas - Seu Rosto, Seu Corpo, Seu Cheiro, Seu Jeito, Você - gritam e não me deixam viver. Eu peço, eu me desespero pra que Você e Seu Nome e as coisas vivas que fazem parte de Você sumam e me deixem em paz mas isso nunca mais poderá acontecer e eu terei que conviver com Seu Nome dissolvendo minha memória até só restar Você e as coisas - Seu Rosto, Seu Corpo, Seu cheiro, Seu Jeito, Você. E falta pouco. Porque Você já sou eu.

23 de ago. de 2010


Fique comigo, meu bem, mas não me ame. Me excite, me odeie, me recuse, me venda, me estrague, me esqueça, me machuque, me queira bem, mas não me ame.
Se aguente, meu bem, e não me ame. Se aproveite de mim, me faça de gato e sapato, me chame de docinho, fique a sós comigo, me traia com meu amigo, pegue emprestado meu cd favorito, me sirva, me agradeça, mas não me ame.
Desista meu bem, nunca me ame. Me deixe morrer sozinho, me traga café na cama, me apresente à sua família, me ligue todas as noites, me xingue, me mastigue, me trague, me leia, me roube, mas não me ame.

O amor me destrói.

17 de ago. de 2010

Sapatos vermelhos

A morte veio depois. Primeiro veio aquele som do salto fino e vermelho pisando o chão de madeira. Toc, toc, toc. A última coisa que eu me lembro ouvir antes de morrer, não o som da risada insuportavelmente alta dela, nem o estilhaçar do meu copo de uísque – mil pedaços enfeitando o chão - muito menos o estampido surdo do revólver que calou todos os outros sons. “Calma” – eu disse, enquanto ela me olhava com aqueles olhos apagados de bicho - “Calma que você não sabe o que está fazendo, larga isso, baby.” Ela sequer piscou. Continuou andando, toc, toc, toc.
E bem em frente a mim, eu pude olhar direito o apagado dos olhos dela. E tive medo, muito medo do frio que morava ali e me queimava. Ela queimava. E olhava pra mim, apontando aquela raiva, e olhava pra mim, e gargalhava tão alto e eu já não podia ouvir mais nada.
Morri não muito depois, rápido, com uma bala na cabeça. A desgraçada estourou meus miolos porque não podia correr o risco de errar. Devia ter apenas uma bala, ou o suficiente de coragem para um tiro só. Foi embora correndo, deixando ecoar no apartamento vazio o som daqueles malditos sapatos vermelhos que eu havia dado de aniversário dois dias antes. Toc, toc, toc. Quebrando o silêncio que velava a minha morte.