24 de mai. de 2010

Vermelha

O relógio da sala marca as horas e mais três voltas do ponteiro maior e será hora de ir. Mas eu ainda não estou pronta. Na verdade, eu sei que nunca estarei pronta.
Meus dias, mesmo com ele, com a presença dele e com tudo que vivo com ele, são vazios como se quase não existissem. Eu tenho tudo pra ser feliz e até seria, se esse tudo que é o suficiente pra tanta gente não fosse o carrasco que eu tenho que suportar diariamente. Eu só estou cansada. Eu só não aguento mais.
É que há tanta coisa dentro de mim que não me cabe e eu corto os meus pulsos pra me salvar de explodir. E é sangrando as poucos, e é vendo a vida escapar de mim, vermelha, que eu encontro o sentido que eu procurei a vida inteira; morrendo eu descubro que nunca soube a viver.
Morro no exato momento em que deveria entrar na igreja e me casar com o homem da minha vida.

20 de mai. de 2010

Herói

Eu não saberia dizer como tudo começou. Talvez, muito parcamente, dizer onde e quando tudo começou, naquele dia cinza - seria meados de julho? - na beira do cais. Fumava meu terceiro cigarro em menos de uma hora, minhas mãos tremiam de ansiedade e eu pouco me lembro do que fazia alí. Sei que esperava. Foi quando ele passou por mim, camisa de tricoline gasta, andar apressado, sem graça, sem jeito. Olhava pra dentro. Parou na minha frente e sorriu. Sorri de volta, cigarro nos dedos. "Ei moça" - perguntou sem me fitar - "quer dar uma volta?". Não tive escolha: "Vamos embora daqui".
A partir daí iniciou-se algo que eu não chamaria de caso de amor. Primeiro que um caso de amor não começaria num dia feio como aquele, e não envolveria uma pessoa emocionalmente desequilibrada como eu, muito menos alguém perdido como ele. Ou talvez, em filmes. Mas minha vida não era nada parecida com um filme, com um livro, com uma música. Minha vida estava mais pra uma manchete de jornal barato. Insossa e previsível.
Nos víamos assim, duas ou três vezes na semana, no meu apartamento pequeno que dividia com uma gata amarela e arredia. Às vezes menos, porque ele era desses rapazes escorregadios que somem quinze dias e aparecem como se nunca tivessem cruzado a porta. E se eu reclamasse, ele balançava a cabeça e dizia que era assim, sem rumo nem lei, bicho selvagem que não gostava de coleira, cavalo que não se deixava domar. Que fosse. Eu não me importava. Na verdade eu nunca me importava com absolutamente nada, totalmente vazia que sou. Até o dia - era um domingo, bem me lembro - que ele bateu na minha porta com os lábios partidos e a camisa de algodão azul que eu tinha dado de presente suja de sangue. E não disse uma palavra enquanto eu limpava a ferida aberta e perguntava ligeiramente distraída o que tinha acontecido. Depois, levantou-se, olhou vagamente pra mim e disse que precisava ir embora, que queriam acabar com ele. Pela primeira vez fiquei com medo de perder algo. "Vamos chamar a polícia", corri pro telefone. Ele me segurou pelos ombros, me olhou fundo nos olhos como nunca tinha feito antes e disse sem piscar "Eu sou o herói dessa história, moça, não preciso ser salvo". Me beijou a testa e saiu. Sabia que nunca mais o veria de novo, mas mesmo assim não me mexi um centímetro pra tentar impedir que ele fosse embora. Comecei a amá-lo naquele instante, agora sei, no momento exato em que ele saiu da minha vida e perdeu-se completamente no mundo como se nunca tivesse existido.

7 de mai. de 2010

Linger*

Me coma, eu tinha dito. Me coma, me transforme na puta que você acha que eu sou, mas por favor cala essa maldita boca. Você falando manso assim me lembra ele, eu pensei. É, lembrava.
Perto da janela eu podia contar uns vinte cigarros derramados num cinzeiro velho, cinzas espalhadas pelo parapeito da janela, onde eu ficava tonta tentando olhar pra baixo, mas não por ser alto demais, não era, culpa do álcool. O apartamento dele era pequeno e porco, as paredes amarelas desbotadas com manchas de mofo, os quase-nenhum móveis, o cheiro azedo de mijo que vinha do banheiro estava ficando insuportável. Coragem garota, acabe logo com isso.
Eu tentava fingir pra mim, mas estava mais do que claro o que eu estava fazendo ali. Não digo o óbvio, todos os seres vivos e inanimados presentes naquele cubículo sabiam que eu estava ali por uma trepada. Eu digo o implícito, o porque de eu procurar nos braços de um total desconhecido o que eu tinha a minha disposição em casa, e ainda mais, o que eu adorava ter a disposição em casa. Mas eu precisava fazer isso e provar pra mim que eu não prestava e que ele ficaria bem melhor sem mim. Talvez assim, pensei. É, talvez assim.
Me coma, eu gritei, The Cranberries tocando na rádio, aquele homem me olhando com um olhar descarado, gotas de suor brilhando sobre os lábios dele, era tarde demais pra recuar. E enquanto ele se aproximava nu, eu quase completava: vem, faça com que eu tenha motivos reais pra ter nojo de mim.
“Você sabe que eu sou uma idiota por você, você me tem em suas mãos”, a moça cantava em inglês, enquanto aquele estranho me fodia como um bicho. E eu estava em todos os outros lugares, gosto de vinho e porra na boca, a letra da música me levando pra longe dali, pra bem longe, ele no pensamento, a imagem dos olhos dele grudada na minha retina, eu quis chorar. Eu sou uma puta, concluí, e putas não choram. Uma puta da pior espécie, uma puta que dá sem querer e sem cobrar, apenas porque tem medo do amor. Uma puta, uma puta, repetia tentando afugentar as lágrimas. Uma puta. Mas putas também choram com Cranberries.



*Texto postado no Blog de Matheus dia 01 de julho do ano passado, o presente que ele me deu de poder ser o centésimo post e que por algum motivo nunca tinha sido postado na íntegra aqui. Resolvi postar agora porque faz décadas que ando tão fértil quanto uma sexagenária. Beijos a todos, e obrigada pelos comentários! Vivo querendo agradecer aqui, mas sou egocêntrica demais pra dedicar um post só pra isso :D. Muito obrigada pelas visitas, por me lembrar que isso aqui vale mesmo a pena. Outros beijos!
P.s.: E sou eu na foto mesmo, magra e feia como a fome. Haha!
P.p.s.: E só uma coisa muito curiosa que eu notei, sabiam que a maioria das pessoas que passam por aqui são psicianas? Isso é assustador! Parem de parir em fevereiro-março, o mundo já tá farto desse povo romântico e sonhador e talentoso e lindo! Hahaha!