29 de dez. de 2011

Catarse

Deslizo as minhas mãos pequenas, primeiro no interior das coxas, levemente abertas num convite, e devagar subindo mansas com o arrepiar dos pêlos até a barriga lisa, inerte e silenciosa diante das carícias da minha própria pele, dos meus próprios dedos frios como pilastras de mármores sustentando todo o peso da carne, minha barriga inerte em total contraste com os mamilos rijos e urgentes como um broto em flor, sensíveis ao mínimo toque, mesmo o meu. Meus lábios, antes abertos, se contraem como numa reza entoada baixinho, olhos cerrados, queixo levantado, e num sussuro entre um gemido e outro, quase inaudível, um nome. Um só e o mesmo nome de sempre. O meu.
Só gozo pensando em mim.

10 de dez. de 2011

Mea maxima culpa

Só me encontro no meio da lama. Só cercada de lama me sinto completa, me sinto aceita, me sinto eu. Revelo minha alma em carne viva no meio da lama. Não tenho vergonha de mostrar o peito aberto em dois no meio da lama. Cercada de gente como eu, gente feita da mesma carne e do mesmo osso e da mesma decadência e da mesma infâmia, com lama correndo nas veias no lugar de sangue, como eu, a parte podre de um mundo mais podre ainda. Mas ainda assim eu tento sair da lama. E quando de alguma forma eu acho que consigo sair do meio de toda essa merda sem sequelas o destino ri de mim e me puxa pra baixo, cada vez mais pra baixo, sempre me lembrando o que eu sou. E S C Ó R I A. L I X O. R A L É. Mas eu me sinto melhor na lama. Me sinto eu, na lama. Mostro a cara, tiro a máscara, dispo a roupa, só na lama. Entre os meus. Retorno ao pó, à parte, à sorte, ao bagaço, à mim. Retorno, porque não consigo não fazer parte da lama. Porque não me deixam não fazer parte da lama. Nasci, vivo e morrerei na lama. Com a alma em carne viva. E o peito aberto em dois.
Só me sinto viva no meio da lama.

24 de nov. de 2011

A Camisa

Eu amo essa Camisa porque é a última coisa que você me deixou. Eu amo muito essa Camisa, agora é a coisa no mundo que eu mais amo, só por saber que ela é sua e agora está comigo; só por saber que um dia ela esteve colada no seu corpo e agora tem a possibilidade de estar colada no meu; só por saber que um dia seu perfume esteve nela e agora é o cheiro das minhas roupas que a impregnam. Eu amo essa Camisa porque ela é a sua segunda pele. Eu amo essa Camisa amarrotada, amo-a como se fosse uma carta, como se fosse uma partitura, como se fosse uma flor, como se fosse um presente, como se fosse um jantar, como se fosse uma esperança mas ela é só uma Camisa. Mais uma Camisa, entre tantas no seu guarda-roupas e a única Camisa amarrotada em cima do meu vestido favorito.
Eu a amo demais. E ela é só uma Camisa. Meu amor não tem a mínima etiqueta.

23 de nov. de 2011

Quintal

Conheci o amor no muro da casa da minha avó: era um menino baixinho, espinhento e de cabelo gorduroso. Não lembro o nome, mas de que importa? Talvez nem tivesse nome. Só tinha era uma vontade apertada contra a parede pintada de cal e um beijo com gosto de jambo roubado.
A saudade tem gosto de jambo roubado.

21 de nov. de 2011

[ se por um acaso

Tem algo em mim que sempre foi torto
Que eu trouxe comigo das tripas da minha mãe
Minha mãe que morreu Santa
E que justamente por ser Santa
Escondeu debaixo da saia a única parte podre de sí
A única parte vil e egoísta
Que nasceu comigo como um gêmeo siamês

E desde sempre não tive escolhas
Não tem isso de destino se eu já sei o meu final
Não tem isso de fé se já eu nasci herege
Torta sou
Torta serei
Torta morrerei

Mas
[se por um acaso
Um dia eu tivesse escolha
[se por um acaso
Me deixassem deixar de ser errada
Daria um jeito qualquer
De desamassar a minha alma
De limpar a sujeira da minha história
E tapar os buracos do meu coração

Aí sim
Aí sim eu criaria um cachorro

11 de nov. de 2011

Sem título

Ainda choro um pouquinho
Mas só de madrugada
E só por medo
Sabe medo?
Não do barulho na janela
Nem do último pesadelo
Nem da lembrança do sangue no filme de terror
Mas medo mesmo
Medo de macho
De gente crescida
Ainda choro um pouquinho
[juro que só um pouquinho
e só de madrugada]
Por medo de todo dia acordar só

Me pelo de medo do lado direito da cama gelado como um cadáver.

31 de out. de 2011

Resquícios do meu charme



Ainda há em mim agora resquícios do meu charme. Apesar da decadência insone que bate na minha porta todas as noites com uma garrafa de uísque nacional na mão direita e dois vinis de Tim Maia na esquerda, ainda há - e há quem diga que sempre haverá - o pouco que me resta do meu deselegante charme. O charme que ainda mora nas minhas cicatrizes gêmeas no quadril que não sei como surgiram, o charme nas minhas costelas aparentes, cada vez mais aparentes - culpem as noites de mal-dormir, culpem-nas! - o charme das minhas olheiras arrocheadas e da minha apatia de viver cada dia esperando que o próximo chegue trazendo um pouco mais de agonia. Um pouco do meu charme explodindo em baforadas de fumaça, um pouco do meu charme vertido em litros de vômito cor-de-vinho, um pouco do meu charme grudado nas têmporas suadas cheirando a puro álcool. Ainda há, meu bem, e sempre haverá resquícios do meu charme no lixo em que você me transformou.

29 de out. de 2011

Arrastada


Assim que acordo, todos os dias, com os primeiro raios da manhã, o amargo da sua falta pisca pra mim, primeiro desfocado, depois desesperadamente nítido até dominar minha visão por inteira, morno como o nascer do sol. E não haverá potes de dias e de madrugadas, não haverá montanhas de horas de relógio, nem rios de semanas desmaiadas que apaguem as minhas memórias, entalhadas em mim como as nossas iniciais na árvore da nossa infância. E agora, com os pés afundados na lama preta do manguezal, eu só consigo ver pedras no meu destino. Talvez pela quantidade de pedras que cercam a margem do rio, pedras escorregadias de lodo e polidas pelo vai e vem das águas, pedras que poderiam contar tantas histórias de tanta gente que passou por aqui, como eu, como você. Talvez porque agora são as pedras desse mesmo rio em que brinquei com você a minha vida inteira que me enchem os bolsos e me fazem pesar mais de uma tonelada. E agora, cada passo que eu dou é como se tivesse caminhando em direção ao começo. Ao fim de todas essas pedras, ao fim de toda essa lembrança que me veste às vistas a cada segundo, estou indo em direção a uma vida inteira sem futuro. E enquanto caminho e a água vai me cobrindo aos poucos, molhando a minha pele e roupa e sentido, vai lavando os meus sonhos, vai levando junto com ela o meu desespero. Tento falar pela última vez o seu nome antes de afundar completamente, mas me falta ar. Não tem volta. Não tenho escolha. Sua ausência me destruiu por inteira e só a morte pode me salvar dos meus pedaços. E que o rio se encarregue de arrastar o que restou de mim como o tempo não terá tempo de fazer.

26 de out. de 2011

Déjà vu

Eu ontem sonhei contigo
Um lindo sonho contigo
Estávamos os dois de braços dados na praia
Você sorria com dentes de conchas do mar
E me beijava com gosto de sal
Eu podia bem ficar alí pra sempre
Eu podia bem construir uma casa de areia pra nós dois
Onde as ondas bateriam nos nossos pés todas as manhãs
E os peixes brincariam com nossos cabelos
E a luz do sol nos acordaria tão cedo mas não levantaríamos da cama
Porque somos preguiçosos e gostamos de dormi até bem tarde
Eu faria perucas de algas porque não teria alergia
E nós comeríamos peixe assado todos os dias
E carangueijo porque você não teria alergia
Mas o sonho se desfez como um castelo de areia pisado
E eu acordei sozinha e seca
Sem ter você nem perto nem longe
Um vazio do lado direito da cama
Um vazio dentro de mim
Da janela nenhum raio de sol
Nem zoada de jet ski
Só barulho de chuva
Chovia lá fora
E eu tenho certeza que chovia por nós dois

24 de out. de 2011

Leve duas moedas para o barqueiro

Hoje eu acordei querendo morrer. Sinto que para que isso sáia de mim, esse veneno que me consome e me corrói aos bocados só tirando todo o sangue do meu corpo, litros e litros de sangue drenado de cada poro. Só assim, e talvez, nem assim. Hoje quando acordei querendo morrer abri os olhos e tinha dois raios de sol no teto na minha direção e só o que eu queria era voltar ao breu total de dentro de mim. Queria estar fora de mim. Desexistir. Ser como uma alma perdida no submundo que por não ter sido sepultada corretamente não tem o direito de fazer a travessia. Ser como ela condenada a vagar por toda a eternidade entre o mundo dos vivos e o mundos dos mortos. Hoje eu acordei querendo morrer e levar comigo toda a dor que estou sentido, tão tangível que a vejo sentada agora na minha frente sorrindo para mim. Ainda não sei se a alimento, se a consumo, se choro abraçada com ela. A única certeza que tenho, é que essa dor, tão material, tão debochada, me acompanhará para sempre. Até que eu tenha coragem. Até que me coloquem nos olhos duas moedas de ouro para Caronte. Mas eu nunca farei a travessia.

2 de out. de 2011

Caixa

Hoje enquanto tentava organizar as minhas gavetas achei uma caixa onde costumava guardar coisas que considerava importantes pra mim. Um caixa pequena, já rasgada, mas entupida de lembranças que algum dia considerei especiais por algum motivo. Achei dentro dela, entre outras coisas: uma foto minha com meu sobrinho recém-nascido, o resultado do vestibular da UFBA de 2009.1 com meu nome circulado, a primeira carta de amor que recebi, um skate de dedo que ganhei de um garoto que eu gostava na 4º série, um chaveiro de Porto de Galinhas e uma foto minha sem os dois dentes da frente. Encontrei também um poema-cordel, que fiz dia 29/11/2008, numa noite em que deveria estar estudando pro vestibular. Fiquei com a barriga quente enquanto lia, então tive vontade de compartilhar aqui no blog. Da época que eu era sonhadora e apaixonada (era?):

Com um amor de brincadeira
Ela sonhava todo dia
E de um todo tentava
Até promessa e simpatia
-" Por favor "- disse uma noite
Pra uma estrela (de) cadente
"- Será que dá pra dessa vez
Ele ser bem diferente?
Alto de topar no teto
Meigo como um passarinho
Meio planta, meio gente
E alegre, um bocadinho"
Passaram dias, meses, sonhos
E a menina a pedir
Deixava de fazer tudo
De comer e de dormir
E de tanto se afundar
Em quereres sem ter fim
Não notou que um belo moço
A olhava do jardim
"-Ah, se ela olhasse pra mim!"

21 de set. de 2011

Looping


E me oferece um drink okay baby um martini duplo com azeitona sabe azeitona não cereja ele sorri e faz o sinal para o garçom trazer achei que você fosse o tipo que pediria algo doce fico entediada o que uma moça como você faz sozinha em um lugar como esse? olha baby se te contasse você não acreditaria em porra nenhuma e é história longa demais tenho a noite inteira enquanto bar estiver cheio de garrafas okay é que matei um homem a tão pouco tempo que minhas botas ainda estão encharcadas de sangue ele gargalha com a cabeça jogada pra trás é a primeira vez que percebo como ele é bonito eu matei um homem assim parecido com você é o que eu faço de melhor penso quase alto demais não acho que você seja capaz de matar alguém com essas mãos pequenas você não acreditaria bebo todo o conteúdo do copo em uma golada só e já não sinto o gosto nem vejo as cores do mesmo jeito há quanto tempo bebia naquele lugar? talvez duas ou três horas ele me olha com a curiosidade de uma criança em frente a um parque de diversões e decerto não põe fé alguma nas merdas que digo bêbada como um gambá foda-se então por que você o matou? negócios baby ele é tão jovem que tenho pena quer tomar o próximo drink na minha casa enquanto me conta os seus negócios? debocha de mim whatever não sou capaz de dar dois passos sem tropeçar no terceiro o sigo em zig zag por um beco estreito não muito longe dalí o apartamento é escuro e úmido e já na porta de entrada a língua dele escorre pelo meu pescoço o hálito de uísque nacional os músculos bem definidos quase explodindo a camiseta as mãos ligeiras em brasa nos meus seios quase perco o jeito ao enfiar a faca dois dedos acima do umbigo e torcer com toda a força que escondo ter a boca dele ainda molhando a minha sem tempo pra mais um gemido o sangue sujando a minha bota merda adoro essa bota pego um cigarro na bolsa ainda olho mais uma vez pra foto dele 5 mil por um pescoço tão lindo e uma bota perdida ainda está no começo da noite volto cambaleando pro bar e ele está sentado exatamente no mesmo lugar sorrindo e me oferece um drink mas eu parei de beber.

7 de set. de 2011

Cisco

Desde pequena ouço dizer que homem não chora
Mas por vezes ouvi meu pai chorar à noite
Por horas a fio
Escondido na cozinha pra a gente não escutar
E quando algum dos meus irmãos o pegava chorando
Ele sorria e dizia que era um cisco
Era sempre um cisco.
Eu não entendo o porquê dessa história
De homem não chorar
De homem não poder chorar
Porque meu pai quando chorava
Até muito tarde, como um menino com medo
Ficava muito mais humano

4 de ago. de 2011

Gaia

Carreguei o amor dentro de mim durante muito tempo. Escondi dentro de mim o fardo da certeza durante a vida inteira. Pintei todas as paredes de amarelo, coloquei um jarro de flores na janela, construí num galho um ninho feito todo de açúcar. E o amor invadia o meu corpo lentamente como uma trepadeira. Transformou cada gota de lágrima despencada em mel e cada pesadelo sonhado em algodão doce e cada ruga marcada em origami. O amor me invadia pouco a pouco e me transformava em brasa doce, que pulsava ritmada com as folhas da amendoeira que caiam no quintal no arrastado dos dias. Esperava. E num dia, enquanto preparava torta de maçã com canela, choveu. Choveu muito. Choveu como nunca chovera antes, como nunca antes fora permitido chover. A chuva derreteu o ninho, matou as flores, infiltrou as paredes. Quando a chuva começou a chover de dentro pra fora, emudeci. Nublei.
Meu céu azul agora é nevoeiro. Meu filho agora é um rio de sangue.

Minúcias

Eu comumente me parto em duas
Partícula que deseja ser pó solto
Molécula que deseja ser raiz
Parte de mim
Quer ser feito folha seca levantada do chão
Barco deslizando manso nas espumas do mar
Sempre longe
A minha outra metade
[a parte sensata de mim
Fica me lembrando de que nem tudo é flor
Que nem mesmo as nuvens são eternas
E que mais vale um pássaro na mão do que dois voando
Mesmo se fosse eu um desses dois

Confesso que dessa metade eu tenho pena.



3 de ago. de 2011

Filme


CENA 10

EXTERIOR- DIA - PRAIA

MOÇA está parada em frente ao mar com os olhos cerrados. Uma mecha de cabelo cái no rosto. MOÇA retira sem abrir os olhos.

MOÇA (V.O)

- Sinto como se meu corpo rebentasse tal uma onda na beira de um cais.

MOÇA abre os olhos.

MOVIMENTO DE CÂMERA MOSTRA UMA ONDA ATINGINDO OS PÉS DESCALÇOS DA MOÇA.

MOÇA (V.O)

- Não sinto mais a rigidez dos meus pés, não lembro mais sequer o meu nome.

MOÇA caminha lentamente em direção ao mar.

MOÇA (V.O)

- Só ouço o som do meu coração batendo desesperadamente no meu tórax querendo escapar.

MOÇA continua caminhando até que a água a cubra totalmente.

MOÇA (V.O.)

- Afundo porque agora ele é pedra.

CÂMERA SOBE LENTAMENTE ATÉ ENQUADRAR SOMENTE O CÉU NUBLADO.

SOBEM OS CRÉDITOS FINAIS.

3 de jul. de 2011

Há um pássaro azul no meu coração


Joaquim me disse uma vez que o amor é um desossador de aves. Me abraçava forte enquanto dizia isso baixinho, num abraço que era quase uma gravata e me sufocava um pouco, e dizia cada vez mais baixo "olha, amor, o amor é uma coisa e tanta, é um desossador de aves, vai nos tirar a estrutura e depois nos consumir aos pouquitos" e ria, e ríamos e éramos muitos jovens.
Joaquim me dizia coisas que eu não entendia, coisas sobre o fim e o começo, coisas sobre o não ser, sobre os quereres, as nuances do mar, sobre a espiral do mundo. Joaquim me fazia coisas que eu não entendia, Joaquim me apresentava poesias, e eu o amava cada dia mais um tanto, tanto amor que poderíamos caber numa daquelas fantasias que ele gostava de inventar, jovens que éramos.
De tanto falar e ser, Joaquim fez nascer em mim um pássaro. Um pássaro muito azul que se escondia quando ele não estava por perto e que cantava quando ele aparecia. Era um lindo pássaro azul secreto. Era um enorme pássaro azul secreto, que mais que morar em mim, me preenchia. Mas Joaquim tinha medo do desossador. E por temer, Joaquim quis livrar-se do pássaro azul que havia no meu coração. Queria ele desaparecido, escasso, fugido, antes que o amor o consumisse. E por temer, ele, tão jovem que era, tão sabido que era, não entendia daonde nascia o desossador. Azeviche foi ficando, azeviche ficou.
Há um pássaro azul no meu coração e eu tenho que tirá-lo de lá antes que Joaquim o mate.

26 de jun. de 2011

Canção de exílio

Estou voltando, e permita e queira Deus que tudo esteja exatamente nos mesmo lugares em que deixei, a máquina de escrever com o erre emperrado, a samambaia perfilhada da sala de estar, minha velha mãe cheirando a alho poró. Já faz tanto tempo que fui embora que assalta-me a mémoria nítida de cada ponto descascado do papel de parede, de cada canto escondido da casa, como se ela e eu fóssemos uma coisa só feita de sangue e concreto. Longe dela minguo, lunático que sou. Reduzo-me a pó, poeira, barro, areia descartada no capacho da cozinha. Pela lembrança dela, nasço, contravenção que sou. Broto nas hortaliças, nas ervas daninhas, no mato, na Mangueira com um coração flechado tatuado no tronco. Para ela volto, nostalgia que sou, e permita e queira deus que tudo esteja exatamente nos mesmo lugares em que deixei.

Por que assim vivo, lua, vida, saudade e em loopping por toda a eternidade, longe dela, perto dela, como a marca de uma cicatriz.

22 de jun. de 2011

No soul power


A loucura me disse uma vez que eu deveria jogar todas as lembranças fora, junto com os cacos de vidro e os potes de mel. Não lembro das palavras exatas, nem do seu timbre de voz, tampouco lembro a direção que o vento soprava naquele momento. Mas quando coloquei a mão no peito senti a marca que aquele conselho deixara. Um buraco fundo e tão fundo que pude sentir você dentro de mim pedindo socorro.
Demorei pra acreditar que era você e não eu que chorava.

19 de mai. de 2011

No dia em que Carlos morreu

No dia em que Carlos morreu, lembro de ter amanhecido com as têmporas molhadas de suor. Não sei de que adiantará essa informação frente à gravidade dos fatos que se sucederam ao longo do dia, mas era impossível não notar o calor anormal que fizera naquela madrugada e permanecera durante o dia inteiro. Lembro de ter acordado, no dia em que Carlos morreu, mais cedo que o habitual, o que era deveras estranho, porque quase não havia luminosidade pra me acordar, apenas um filete de luz que escapava pelas cortinas desbotadas e iluminava a parte interna da minha coxa esquerda. Acabo de me lembrar vagamente que no dia em que Carlos morreu, levantei da cama com um sentimento estranho, que presumi ser resquício de um sonho infeliz. Talvez isso e não o calor, me impeliu a levantar da cama cedo, antes que o dia clareasse por completo. Talvez a sensação latente de que algo aconteceria naquele dia e que esse algo mudaria pra sempre o destino de alguém. Não acredito nessas coisas. Ou melhor, não acreditava, até o dia em que Carlos morreu, levando consigo toda a minha descrença.
Trabalhei como de costume, no dia em que Carlos morreu. Andei pelas ruas da cidade observando as lavadeiras gordas equilibrando imensas bacias de água na cabeça, vi meninos pretos de olhos pretos e sorrisos amarelos brincarem de bola de meia no meio da rua, comprimentei vendedores de pipoca com seus carrinhos de pipoca cor-de-rosa. Tudo parecia normal, no dia em que Carlos morreu. Exceto o calor. Fazia calor demais. Fazia calor como nunca antes.
Anunciaram no telejornal a morte de Carlos. Sujeito caucasiano, mais ou menos 30 anos, encontrado morto no cais com um tiro certeiro no meio da testa. Crime passional, sua amante é a principal suspeita. Eu - pensei. Desejei. Não era eu. Não poderia ser eu, pelo simples fato de que sequer saberia da existência de Carlos se não fosse a sua morte e o anúncio da sua morte no noticiário da televisão.
Minha vida faria muito mais sentido se fosse eu a assassina de Carlos. Se fosse eu que tivesse empunhado a arma que tirou a vida de Carlos. Se ao menos um dia - não tão ordinário por causa do calor - eu tivesse usado a minha vida pra algo mais útil que consumir meus minutos apenas com a mediocridade da minha existência.

22 de mar. de 2011

Minimalismo

Yellow eyes!
Foto por Valentine Fonseca

Ele me lembra alguém, esses olhos rasgados que transformam-o quase em felino me lembram alguém que amei há bastante tempo - tanto tempo sem amar que nem bem lembro do gosto - mas esse olhar, esse olhar e esse jeito de andar - reparo agora que se levantou - manso desse jeito, andar de gato, como se já não bastassem o par de olhos rasgados. Furtivamente observo-o. Furtivamente desejo-o. Obssessivamente contemplo-o como quem contempla um quadro recém acabado, resquício de tinta amarela ainda fresca pingando do dedo. E no silêncio do meu olhar o amo, talvez por isso o amo, tanto seus olhos de gato, tanto seu andar macio, tanto a lembrança de alguém que amei - faz tanto tempo - o amo tão somente pela certeza de que nunca poderei tê-lo aos pedaços. Só quero os pedaços. O amor por inteiro - faz mesmo tanto tempo - já não me importa mais.

27 de fev. de 2011

Desiderata

Quando dei por mim, estava morta. Atirada displicentemente no sofá da sala, boca escancarada como num convite ao demônio, olhos cerrados como se não ousasse ver a face do meu assassino. Morta, assim, atirada displicentemente no sofá da sala, como se já não estivesse morta muito antes, talvez sempre, desde que conhecida como viva, enfiada em vestidos vermelhos e sorrisos amarelos como se para desfarçar a minha falta de cor. Sempre morta, sempre ciente que morta, sempre descrente que depois de morta e atirada displicentemente no sofá da sala, a vida enfim vivida e terminada faria algum sentido, mas até agora não fez e não fará, diria uma mulher razoável, mas eu nunca fui uma mulher razoável. Nem agora depois de morta e atirada displicentemente no sofá da sala com uma faca cravada na garganta partindo a minha fé em duas. C'est la vie, um samba antigo toca na rádio do vizinho que eu nunca fui com a cara e daqui a pouco tempo, talvez minutos, a empregada topará comigo e maldirá a limpeza do assoalho empapado de sangue e eu não quero mais assistir o quadro da minha morte, não mais ver meu corpo atirado displicentemente no sofá da sala, já que agora eu sei - mas é como se eu sempre soubesse - que o único sentido da minha morte é a consciência de nunca antes ter estado viva.