19 de mai. de 2011

No dia em que Carlos morreu

No dia em que Carlos morreu, lembro de ter amanhecido com as têmporas molhadas de suor. Não sei de que adiantará essa informação frente à gravidade dos fatos que se sucederam ao longo do dia, mas era impossível não notar o calor anormal que fizera naquela madrugada e permanecera durante o dia inteiro. Lembro de ter acordado, no dia em que Carlos morreu, mais cedo que o habitual, o que era deveras estranho, porque quase não havia luminosidade pra me acordar, apenas um filete de luz que escapava pelas cortinas desbotadas e iluminava a parte interna da minha coxa esquerda. Acabo de me lembrar vagamente que no dia em que Carlos morreu, levantei da cama com um sentimento estranho, que presumi ser resquício de um sonho infeliz. Talvez isso e não o calor, me impeliu a levantar da cama cedo, antes que o dia clareasse por completo. Talvez a sensação latente de que algo aconteceria naquele dia e que esse algo mudaria pra sempre o destino de alguém. Não acredito nessas coisas. Ou melhor, não acreditava, até o dia em que Carlos morreu, levando consigo toda a minha descrença.
Trabalhei como de costume, no dia em que Carlos morreu. Andei pelas ruas da cidade observando as lavadeiras gordas equilibrando imensas bacias de água na cabeça, vi meninos pretos de olhos pretos e sorrisos amarelos brincarem de bola de meia no meio da rua, comprimentei vendedores de pipoca com seus carrinhos de pipoca cor-de-rosa. Tudo parecia normal, no dia em que Carlos morreu. Exceto o calor. Fazia calor demais. Fazia calor como nunca antes.
Anunciaram no telejornal a morte de Carlos. Sujeito caucasiano, mais ou menos 30 anos, encontrado morto no cais com um tiro certeiro no meio da testa. Crime passional, sua amante é a principal suspeita. Eu - pensei. Desejei. Não era eu. Não poderia ser eu, pelo simples fato de que sequer saberia da existência de Carlos se não fosse a sua morte e o anúncio da sua morte no noticiário da televisão.
Minha vida faria muito mais sentido se fosse eu a assassina de Carlos. Se fosse eu que tivesse empunhado a arma que tirou a vida de Carlos. Se ao menos um dia - não tão ordinário por causa do calor - eu tivesse usado a minha vida pra algo mais útil que consumir meus minutos apenas com a mediocridade da minha existência.