6 de mai. de 2012

Crônicas da Minha Geração

O barulho das gotas do chuveiro mal fechado pingando pigando pingando me incomoda tanto que é quase eu que escorro pelo ralo da minha paciência. Tortura chinesa, dizem, mas acho só que é uma marca da minha geração: essa perturbação exagerada aplicada em coisas miúdas, o nada interessante dentro da geladeira, o ônibus que demora a passar, a internet que caiu a mais de meia hora. O incomodo do barulho das gotas do chuveiro mal fechado não é tão grande a ponto de me fazer levantar para apertar direito o registro. E no intervalo cada vez mais curto entre um pingo e outro, na reverberação do som ecoando muito alto na minha cabeça como uma voz numa sala sem muitos móveis, na queda das gotas que soa como o passo de alguém cada vez mais perto de mim, mora a minha agonia, meu transtorno, minha inércia.
O barulho das gotas do chuveiro mal fechado pingando pigando pingando me incomoda demais mas eu permaneço sem mover um músculo pra acabar com ele: parece, percebo, que a agonia do som insistente me atrái. Ou o ócio: não passa de uma marca da minha geração.

6 de fev. de 2012

Memória


Por preguiça, eu só sonho com você em preto e branco. E nessa sucessão de imagens monocromáticas nas minhas madrugadas, seu sorriso aparece meio torto, meio disforme, meio apagado. Não mais o tenho tão nítido na memória e tenho pra mim que ele se tornará um borrão irreconhecível na dança dos frames sem cor com o passar dos dias, tal como um rosto de um desconhecido que só existe em sonhos - será você esse desconhecido que só existe em sonhos?. Mas não me importo em ver seu sorriso dissolvido. Porque ele - sorriso torto, disforme e apagado - mesmo quase desaparecido, povoa todos os buracos em branco da minha cabeça atormentada pelos pesadelos - esses eu sonho sempre em cores, e é sempre cores muito vivas - e me preenche um pouco. E me faz as horas menos largas. E me traz os dias mais acreditáveis. Desde que te conheci só sonho em preto e branco, mas agora acho que não é por preguiça. Sonho em preto e branco porque o seu sorriso - torto, disforme e apagado - é bonito demais pra ser colorido só pela minha memória.

29 de dez. de 2011

Catarse

Deslizo as minhas mãos pequenas, primeiro no interior das coxas, levemente abertas num convite, e devagar subindo mansas com o arrepiar dos pêlos até a barriga lisa, inerte e silenciosa diante das carícias da minha própria pele, dos meus próprios dedos frios como pilastras de mármores sustentando todo o peso da carne, minha barriga inerte em total contraste com os mamilos rijos e urgentes como um broto em flor, sensíveis ao mínimo toque, mesmo o meu. Meus lábios, antes abertos, se contraem como numa reza entoada baixinho, olhos cerrados, queixo levantado, e num sussuro entre um gemido e outro, quase inaudível, um nome. Um só e o mesmo nome de sempre. O meu.
Só gozo pensando em mim.

10 de dez. de 2011

Mea maxima culpa

Só me encontro no meio da lama. Só cercada de lama me sinto completa, me sinto aceita, me sinto eu. Revelo minha alma em carne viva no meio da lama. Não tenho vergonha de mostrar o peito aberto em dois no meio da lama. Cercada de gente como eu, gente feita da mesma carne e do mesmo osso e da mesma decadência e da mesma infâmia, com lama correndo nas veias no lugar de sangue, como eu, a parte podre de um mundo mais podre ainda. Mas ainda assim eu tento sair da lama. E quando de alguma forma eu acho que consigo sair do meio de toda essa merda sem sequelas o destino ri de mim e me puxa pra baixo, cada vez mais pra baixo, sempre me lembrando o que eu sou. E S C Ó R I A. L I X O. R A L É. Mas eu me sinto melhor na lama. Me sinto eu, na lama. Mostro a cara, tiro a máscara, dispo a roupa, só na lama. Entre os meus. Retorno ao pó, à parte, à sorte, ao bagaço, à mim. Retorno, porque não consigo não fazer parte da lama. Porque não me deixam não fazer parte da lama. Nasci, vivo e morrerei na lama. Com a alma em carne viva. E o peito aberto em dois.
Só me sinto viva no meio da lama.