19 de jul. de 2009

Um blues rasgado


Se eu pudesse ou soubesse, eu faria um blues agora mesmo. Um bem rasgado, quase amargo, contando dos meus sentimentos, dos meus pensamentos, das minhas dúvidas, dívidas e ilusões. Talvez ele não se tornasse tão amargo assim. Mas seria rasgado pra que arrancasse aplausos e suspiros da platéia, encantados com a minha dor cantada e interpretada por vozes dramáticas. Minha dor quase inexistente. Vi ou li em algum lugar, que é a dor que sustenta, que dá sentindo a vida. E olhando pra trás, e pros lados, e pra frente, eu vejo que não tenho dor nenhuma pra me sustentar. Eu invento problemas, e equívocos, e tramas traçadas pelo meu fado incerto, a minha bifurcação no final da linha do destino não pode ta aqui em vão, o horóscopo desse mês diz que essa fase vai passar. Eu procuro, eu fantasio, eu viajo, eu fujo, eu me escondo dos outros e de mim mesma, e pior. Tudo isso rápido demais, e mais rápido e rápido e rápido e rápido e rápido como num liquidificador de emoções, e a água não para de cair no meu corpo e bater no azulejo branco do banheiro, e os pensamentos embaralhados embaralhados embaralhados, um filete de sangue escorrendo pela minha coxa e correndo pro ralo, serpenteando até desaparecer quase por completo. Meu destino. Eu queria fazer um blues que contasse toda essa história de não-ser, dessas desventuras amorosas, desse desapego. Eu escreveria esse blues, e seria o último e o único, pois nele eu diria todas as coisas que eu quero dizer, e depois dele eu vou perceber que todo esse falatório só faz sentido mesmo pra mim e pra minha cabeça prolixa como um oceano, mas aí eu já vou ter dito besteiras, já terei feito confissões e promessas, e declarações de amor ao meu amado, declaração de ódio a todas as coisas que eu odeio, ou digo que odeio, mas que serão tão poucas comparadas às coisas que eu adoro que ninguém se importaria. Eu diria tudo a todos de uma só vez, e seria de uma praticidade incrível pra mim, já que eu tenho tanta coisa pra dizer a tanta gente. Meu egoísmo, e egocentrismo e todos esses ismos referentes a mim acabariam, porque esse blues que eu faria falaria só de mim, e tanto de mim, que não teria mais palavras pra me definir, nem necessidade de me rotular. Porque é o que eu faço todos os dias da minha vida, agora eu vejo que não passa de uma necessidade de auto-afirmação, seja lá exatamente o que isso quer dizer, eu não me importo, é só mais uma definição dentre as várias que eu conheço. E todos esses prefixos e sufixos que eu vivo usando, toda essa tentativa exagerada de mostrar pros outros que eu sou, desapareceria com o meu blues. Eu seria uma pessoa melhor depois desse blues, talvez. Eu deixaria de me deprimir, deixaria de ter crises existenciais, porque ora, quem tem crises existenciais depois de escrever um blues rasgado? Mas acontece que eu não posso, nem sei escrever um blues. Não tenho sequer uma dor pra me sustentar, não sou audaciosa o bastante pra mudar o meu destino nem auspiciosa o bastante pra tentar. Não me conheço, nem confio, imagine só, nem confio em mim. Já que é só dobrar a esquina que eu já viro outra, já que é só dormir que eu troco de sonho. E eu torno a embaralhar os pensamentos, e as decepções só aumentam, e as frustrações são uma p.g e eu percebo que nasci pra ser sozinha, e pior, sozinha sem saber escrever um maldito de um blues rasgado e sem uma maldita de uma dor! Sozinha e cheia de pensamentos desorganizados e palavras emboladas na língua, nesse meu mundo de ismos que só tem lugar para mim, se ao menos eu tivesse o conforto do meu blues rasgado, feito por e mim e só pra mim, pra mim, pra mim, pra mim.

Mas se eu soubesse ou pudesse fazer um blues, eu tenho certeza que eu nunca faria.




- Me desculpe. Eu também não consigo entender. Mas por favor, meu bem, apague a luz antes de sair.

2 comentários:

Naila de Souza disse...

E eu fico pensando cá comigo: que previsível eu seria se soubesse fazer um "blues rasgado".
É, acho que de vez em quando, até sinto uma pontinha de orgulho por ser assim, uma surpresa a todo tempo. É claro que cansa, mas....TUDO cansa!
Mas não se preocupe, garanto a você que és feliz por sentir esse turbilhão de emoções, ter todos esses ismos. Te faz única, singular.

Cherie, mais uma vez parabéns pelo lindo e intenso texto.
Cheiro

Amanda Oliveira disse...

Sem palavras, dona Vanny. Feliz dia do amigo!