1 de nov. de 2009

Arrête là, menina


Ela era bonitinha, bonitinha. Andar cheio de graça, olhos negros desmaiados, jeitinho manso de falar: sempre obediente. "Coitada da Lucinha, tão frágil, tão inocente. Não sabe é nada dessa vida, vai é levar trompaço nas esquinas" - diziam as senhoras na quintanda, entre o apalpar de um tomate e outro. "Será que casa? Será que alguém há de querer aquele mosquitinho? Tá no fado da miúda ficar só". O que, de certa forma, era bem verdade.
E quando num dourado dia de domingo, enquanto as crianças tomavam sorvete de flocos na praça da igreja, enquanto as mocinhas solteiras flertavam com toda a ala masculina disponível na cidade, enquanto as beatas babavam na batina do padre, enquanto as fofoqueiras fofocavam, os bêbados bebiam, e os automóveis corriam pra lugar nenhum, enquanto tudo e todos viviam as suas vidas normais que somadas (muitas vezes até multiplicadas), não dariam meio conto de réis nos dias atuais, enquanto todos caminhavam lentamente ou rapidamente em direção a morte, a moça donzela dos olhos desmaiados sonhava com a vida que levaria quando fosse embora dali. Sentada na cadeira de balanço, Lucinha cerrava os olhinhos de azeviche e devaneava feito borboleta com as coisas que veria nesse mundo novo, onde as pessoas se olhariam no rosto e se preocupariam mais com a cor dos olhos do que com números, onde o tempo correria manso e os ponteiros dos relógios teriam a mesma importância que ácaros.
Morreu sorrindo, e ninguém notou. Só comentaram do caixão branco.

7 comentários:

Naila de Souza disse...

Gostei da pitada ácida. Medíocres e normais demais pra entender as ânsias e voos da menina miúda, isso sim.
AS línguas eram mais rápidas que qualquer outro sentido...
Ao menos a pequena se foi se entregando aos seus devaneios.

Adorei o texto, mesmo!
Cheiro enorme honey

HBMS disse...

aaaah... *suspiro*

Amanda Oliveira disse...

Você sumiu.

Anônimo disse...

Como pessoas que querem um pouco passam invisíveis aos olhos de tantos.

Natália Corrêa disse...

Lucinha era tão mais que bonitinha, e ninguém via. Tadinha.

Anônimo disse...

Lindão.

Mónica Lacerda disse...

azeviche será o mundo sem meninas que morrem porque sonham
azeviche sem estrelas ou bordados em mãos alheias
seja açucar, seja divino, seja o mundo. festejamos?